de José Eduardo Agualusa
Há muitos anos viveu na Pérsia um grão-vizir - nome dado naquela época aos
chefes dos governos - que gostava imenso de ler. Sempre que tinha de viajar
ele levava consigo quatrocentos camelos, carregados de livros, e treinados
para caminhar em ordem alfabética. O primeiro camelo chamava-se Aba, o
segundo Baal, e assim por diante, até ao último, que atendia pelo nome de
Zuzá. Era uma verdadeira biblioteca sobre patas. Quando lhe apetecia ler um
livro o grão-vizir mandava parar a caravana e ia de camelo em camelo, não
descansando antes de encontrar o título certo.
Um dia a caravana perdeu-se no deserto. Os quatrocentos camelos
caminhavam em fila, uns atrás dos outros, como um carreirinho de formigas. À
frente da cáfila, que é como se chama uma fila de camelos, seguiam o grãovizir e os seus ministros. Subitamente o céu escureceu, e um vento áspero
começou a soprar de leste, cada vez mais forte. As dunas moviam-se como se
estivessem vivas. O vento, carregado de areia, magoava a pele. O grão-vizir
mandou que os camelos se juntassem todos, formando um círculo. Mas era
demasiado tarde. O uivo do vento abafava as ordens. A areia entrava pela
roupa, enfiava-se pelos cabelos, e as pessoas tinham de tapar os olhos para
não ficarem cegas. Aquilo durou a tarde inteira. Veio a noite e quando o Sol
nasceu o grão-vizir olhou em redor e não foi capaz de descobrir um único dos
quatrocentos camelos. Pensou, com horror, que talvez eles tivessem ficado
enterrados na areia. Não conseguiu imaginar como seria a vida, dali para a
frente, sem um só livro para ler. Regressou muito triste ao seu palácio. Quem
lhe contaria histórias?
Os camelos, porém, não tinham morrido. Presos uns aos outros por cordas, e
conduzidos por um jovem pastor, haviam sido arrastados pela tempestade de
areia até uma região remota do deserto. Durante muito tempo caminharam sem
rumo, aos círculos, tentando encontrar uma referência qualquer, um sinal, que
os voltasse a colocar no caminho certo. Por toda a parte era só areia, areia, e o
ar seco e quente. À noite as estrelas quase se podiam tocar com os dedos.
Ao fim de quinze dias, vendo que os camelos iam morrer de fome, o jovem
pastor deu-lhes alguns livros a comer. Comeram primeiro os livros
transportados por Aba, ou seja, todos os títulos começados pela letra A. No dia
seguinte comeram os livros de Baal. Trezentos e noventa e oito dias depois,
quando tinham terminado de comer os livros de Zuzá, viram avançar ao seu
encontro um grupo de homens. Eram as tropas do grão-vizir.
Conduzido à presença do grão-vizir o jovem guardador de camelos, explicou-lhe, chorando, o que tinha acontecido. Mas este não se comoveu:
- Eras tu o responsável pelos livros - disse -, assim por cada livro destruído
passarás um dia na prisão.
O guardador de camelos fez contas de cabeça, rapidamente, e percebeu que
seriam muitos dias. Cada camelo carregava quatrocentos livros, então
quatrocentos camelos transportavam cento e sessenta mil! Cento e sessenta mil dias são quatrocentos e quarenta e quatro anos. Muito antes disso morreria
de velhice na cadeia.
Dois soldados amarraram-lhe os braços atrás das costas. Já se preparavam
para o levar preso, quando Aba, o camelo, se adiantou uns passos e pediu
licença para falar:
- Não faças isso, meu senhor - disse Aba dirigindo-se ao grão-vizir - esse
homem salvou-nos a vida.
O grão-vizir olhou para ele espantado:
- Meu Deus! O camelo fala!?
- Falo sim, meu senhor - Confirmou Aba, divertido, com o incrédulo silêncio dos
homens.
- Os livros deram-nos a nós, camelos, a ciência da fala.
Explicou que, tendo comido os livros, os camelos haviam adquirido não apenas
a capacidade de falar, mas também o conhecimento que estava em cada livro.
Lentamente enumerou de A a Z os títulos que ele, Aba, sabia de cor. Cada
camelo conhecia de memória quatrocentos títulos.
- Liberta esse homem - disse Aba -, e sempre que assim o desejares nós
viremos até ao vosso palácio para contar histórias.
O grão-vizir concordou. Assim, a partir daquele dia, todas as tardes, um camelo
subia até ao seu quarto para lhe contar uma história. Na Pérsia, naquela
época, era habitual dizer-se de alguém que mostrasse grande inteligência:
- Aquele homem é sábio como um camelo.
Isto foi há muito tempo. Mas há quem diga que, quando estão sozinhos, os
camelos ainda conversam entre si.
Pode ser!
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