Aprender a descansar
Não é raro que, prisioneiros da pressão
que nos impõem — ou nos impomos —, deixemos de saber o que significa descansar.
Pensamos numa vida enclaustrada em dias úteis, e só aí. O tempo torna-se
circular e uniforme. E mesmo quando temos a oportunidade de parar, já não temos
a sabedoria necessária para isso. Como a pausa nos angustia, a tentação é
afogá-la com os atordoamentos mais diversos. O que se passa connosco? Moldamos
os nossos quotidianos como movimento perpétuo, atividade, tráfico de afazeres,
sucessão de programas a executar, produção e consumo. Tudo isso torna-se o
sinónimo de existência, da qual somos cada vez mais profissionais, e cada vez
menos exploradores, inventores ou enamorados. Não admira que façamos das férias
um tempo ofegante como qualquer outro, ainda por cima camuflado por uma
montanha de distrações e obrigações acrescidas que nos atiram para um
inconfessável exílio. Não se pode dizer que sejam um tempo de liberdade,
onde respiramos a transparência, onde ousamos o azul ou a imensidão como
lugares que nos pertençam. Mesmo se deslocados para fora do nosso mundo
habitual, a verdade é que continuamos a correr, a cumprir etapas, e porventura
a deixar para trás o encontro profundo connosco próprios e com os outros.
Regressamos ao trabalho com a insólita sensação de que precisaríamos de umas
férias depois da estafa que as nossas foram.
Torna-se necessário, por isso, fazer escolhas, que não são fáceis, nem automáticas, mas provêm de uma decisão que, à falta de melhor nome, eu chamaria de espiritual. Em vez de produzir, afirmar, esventrar, repetir, deveríamos ousar uma distância crítica e aproveitar as férias para interromper o tracejado sonâmbulo que parece esgotar todas as nossas possibilidades. Precisamos reaprender coisas simples da vida: valorizar a comunicação que acontece sem prazo e sem palavras; investir na hospitalidade que brota da escuta gratuita e demorada; estimar a compreensão que o silêncio, de coração a coração, entreabre; revitalizar os nossos sentidos. Precisamos, por exemplo, de contemplar em vez de ver apenas. De caminhar com vagar e preferir os caminhos mais longos em vez de nos deslocarmos numa cápsula e sempre a toda a velocidade. Precisamos de deixar de ter medo de perder tempo, construindo e desejando presenças mais do que persistindo na acumulação fortuita de sensações e de vultos.
Não nos enganemos. O verdadeiro repouso não o encontraremos prefabricado e pronto a consumir. O repouso não está à nossa espera nos lugares de sonho das promoções turísticas. Não o encontraremos em lugar algum, se ele não tiver antes brotado na nossa alma. Vale a pena assim que ao tocarmos a terra, a água ou o vento toquemos também o coração da vida. Que acordemos a curiosidade e a atenção, que são as formas mais quotidianas, mas também as mais extraordinárias de amor. Que nos detenhamos perante o visível, com a generosidade e o espanto de quem volta a relacionar - se com tudo pela primeira vez. Que abramos janelas e brechas superando os ambientes condicionados, as visões parcelares, os juízos viciados. Que acreditemos que os nossos braços podem chegar bem mais longe do que as curtas distâncias que os nossos olhos alcançam. Que visitemos e nos deixemos visitar pela surpresa que cada dia traz pela mão. Que enchamos o coração de gratidão que é o alfabeto com que a alegria se revela. A vida pode ser mais do que a expressão férrea de uma multiplicidade de finalidades e desculpas exteriores: pode ser transparência pura de si.
José Tolentino Mendonça, Revista Expresso (edição nº 2232, de 08/08/15)
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